O conto

A Artista que nao chorava
(b para b)
Ela andava esquálida, seu universo pouco a pouco se transformou em pele, osso e telas em branco.
Faltavam idéias, o pensamento nas contas a pagar no fim do mês sugavam sua criatividade. Estava com um estranho comportamento:
Navegava como negra nuvem pelos sites de missionárias africanas, freiras enclausuradas portuguesas e inócuas ofertas para ganhar dinheiro sem sair de casa....Essas havia muitas, com pop-ups lindamente diagramados.
Desligou o computador com um palavrão e colocou uma tela na mesa.
-Vou pintar!-Sou artista e isso acontece...Vou pintar!
Ficou horas em frente da tela e tudo que fez com o pincel foi esfregá-lo no cabelo.
-Saco! “Não deve ser tão ruim ser crente, entrar para uma igreja e passar a cestinha, entre uma não olhada e outra pego uns reaizinhos....Roubar de ladrão não é pecado!”
-Não, deve haver algo mais!
Lembrou-se de sua infância e os sonhos de ser uma artista de fama internacional, pensou na frase do avô “Essa menina ainda será uma Tarsila!”. Lembrou também que detestava Tarsila. Chorou ao som do Nando Reis. “Merda de vida”
Trimmmmmmmmmmmm! A cabeça doeu.
-Alô...
-Nossa que voz de enterro alguém morreu?
-Acho que eu...
-Credo!-Não perde essa mania, acho que você é bipolar, semana passada tava toda animada com a encomenda da “La Vie em Rose”! -Até cantou Xitãozinho e Xororó na mesa, cantou mal pra cacete mas cantou...
-Cancelaram...-Ta todo mundo em crise, eu já tinha comprado 15 telas faturadas, sabe o que quer dizer? –Serasa!
-Palavrão não!
-Ai que nada me resta, acho que vou ser pescadora em Maranguape.-ou vender Avon de porta em porta.
-Nada!- e o Carlão?
-Terminamos, um troglodita.
- Bem que te falei, vamos sair hoje?
- Nem um tostão...
- Nossa amiga, se pudesse emprestava. Podia.
- Deixa, eu dou um jeito.
- Não vai fazer loucura hein?
- Se acha que vou me matar, esquece, tenho preguiça...
- Que bom, se precisar me liga.
- Você tem só cem re...
Desligou.
“Gorda falsa”
Voltou pra tela branca, a mente em negro. Desesperou-se, pegou o carro e foi pra livraria.
Amava livrarias, principalmente quando podia comprar os livros que quisesse, agora tudo que lhe restava era olhar, mas já era alguma coisa.
Estacionou o carro com três prestações atrasadas, há cinco quarteirões da livraria, não tinha dinheiro nem pra zona azul. “Quanto será que ganham esses agiotas de zona azul que preenchem e tudo?”. “Tonta”.
Andou, e enquanto andava via lojas com pessoas comprando e vendendo. Queria ser qualquer uma, menos ela.Viu num poste um cartaz: “Joga-se Búzios” “Quanto será que ganha uma mãe de santo?”.
Alonso o vendedor conhecido já não a tratava tão bem, mal cumprimentava, há semanas não comprava nada. “Tudo nesse mundo é interesse”
Seguiu por entre estantes de livros, parou na seção de arte pop; sua preferida “Lichtenstein. Warhol, Thiebaud, Yayoi Kusama. Sentiu um enjôo súbito, conhecia aquilo décor, e pra que servira? Nada. Só pra lembrar que ficaram ricos com arte e ela não”. Consolou-se entre os girassóis de Van Gogh. “Esse morreu pobre e podre, a vida poderia ser pior”. Fechou.
Continuou, parou inconscientemente nos guias de viagem. Lembrou da viagem pra Firenze quando viu o David de Michelangelo e chorou. Chorou agora porque não podia fazer uma viagem nem pra Itanhaém ver a pedra de Anchieta, “A pedra esculpida pelo mar. Será que Anchieta ganhava uma ajuda de custo pra meditar?”
Não agüentava mais pensar em fórmulas obtusas pra manter sua existência.
Fez algo que nunca fazia, tinha horror. Parou em frente aos livros de auto-ajuda. Era sem dúvida a maior seção.
“E pensar que esses caras ganham milhões pra copiar uns aos outros”. Folheou um , depois outro. “Quanta babaquice”. Alice leu todos e continua na merda. Pior! Alice morreu na merda semana passada! ”Viu só? Existem coisas piores...Alice, Van Gogh”
Viu um livro enorme em promoção, a capa era linda; uma flor nascendo no cimento. Pegou. E essa ânsia acompanhada de trejeitos atrapalhados fez cair um livro pequenino, capa bege, fininho. Deixou o grande de lado e pegou o livretinho do chão. Leu o Título:
“Ta na merda? Senta e chora! Mas chora fazendo história”
Autor: Dr Coentro.
“Nome de tempero, deve ser uma merda mesmo” Mas uma estranha intuição de artista pediu pra comprar o livro. Tinha oito reais na bolsa, procurou por Alonso.
-Alonso, esse aqui não tem preço marcado, sabe quanto é?
Alonso olhou o tamanho do livro e virou-se pra ela com cara de semi-desprezo:
-Vou ver no sistema. Ela foi atrás.
Ele procurou e não achou:
-Diabos!- Esse livro não tá no sistema! Pensou em dar uma bronca nos vendedores quando lembrou que ele próprio era um vendedor, nada além.
-Quanto Alonso?
-Não sei. Olhou o livreto. – Cinco, não dez reais!
-Oito?
-Ok. Era preciso tirar aquele pequeno livro fantasma dali, colocou o livro numa sacolinha e o dinheiro no bolso. “Fora de sistema”
Andou os cinco quarteirões pensando em fazer um curso de Dj. Entrou no carro e foi pra casa “Amanhã vence o aluguel, e prometi pagar os cinqüenta paus pra faxineira”.
Calma.
Em casa deitou no sofá e pegou o livreto, depois de tirar o fone do gancho. “Cobrador agora não”
Deitou e levantou, lembrou do título “Senta e chora”
Sentou-se em frente à tela branca e continuou a ler.
“Sua vida tá uma merda, a minha também tava” Era assim mesmo que ele escrevia; “tava”.
“Se sua vida ta assim, tão ruim como a minha tava, você já deve ter pensado em ir pra Tegucigalpa virar monja capuchinha, pescar siri em Cananéia, vender produtos de limpeza de porta em porta, já deve ter pensado em viver de luz na comunidade “É Luz?- Eu como!.” já deve ter pensado até em bater carteira”
Ela já tinha pensado em tudo isso, e mais!
“Se você já pensou tudo isso e mais, se não encontra saída, se tudo parece uma nuvem negra, faça o seguinte....Senta e chora! Não, olha, é pra sentar e chorar mesmo!”
Ela tava sentada, mas não conseguia chorar, há meses não chorava.
“Não consegue chorar? Pense em dor, em sofrimento, pense em Jesus na cruz, pense nas crianças da Etiópia, pense nas pessoas enterradas vivas, nos cachorrinhos abandonados pelos franceses no verão, nas menininhas chinesas abandonadas nas estradas o ano todo, pense no “Vento Levou”, no Negrinho do Pastoreio, em Joana D’Arc, nas vítimas do tsunami, em Che Guevara, em Lorca morto com dois tiros no c..., pense em Ghandi, pense na solidão das ostras, na aflição das mariposas encaçapadas nos lustres côncavos, pense em tudo de triste que já te aconteceu!”
Ela já estava por um triz, mas pensou o que era dela, pensou no Carlão que mesmo troglodita, mesmo um cão era uma companhia. Pensou no gatinho persa que ela teve menina e morreu atropelado, pensou que nunca seria uma Tarsila, mesmo não querendo, pensou que tinha uma casa em Bragança, herança da tia e vendeu. Pensou com força em tudo que parecia triste. Pensou na morte na cadeira elétrica, no caso Lindemberg, na mãe do Bambi que morreu no incêndio da floresta, pensou na vó e no avô, pensou que há meses não comia um petit gateau...
Explodiu em lágrimas, “Que loucura, dá certo!”, se debulhando em lágrimas e roncos altos de choro leu “embaçado” o próximo passo.
“Ta chorando né danada! Agora coloca essa dor, essa raiva, essa mágoa no que estiver na sua frente, escreva alguma coisa, desenhe, pinte! “Pinte?”. Faça uma escultura com miolo de pão, faça o que bem entender, mas deixe essas lágrimas caírem sobre o que está fazendo, deixe que essa dor saia com as lágrimas e faça algo, isso faça”
“Ta fazendo? Isso! Quando acabar, tudo vai melhorar, e eu vou querer saber!”
Meu e-mail? drcoentro@uai.com.
Fim.
“Acabou essa porra?” Chorou mais por ter sido enganada, começou a pintar aquela tela como nunca fizera, pintava com tinta e lágrimas, estava tão fora de sí que ora molhava o pincel na tinta, ora nos olhos, ora na “água que jorrava do nariz” melecou-se toda, estava fudida, mas multicolorida.
Nem viu o que fez, os olhos eram vidraças opacas. De tanto chorar dormiu.
Acordou com a campanhia.
Sentia-se leve, olhou no espelho, viu que parecia “O homem elefante” o rosto completamente inchado.
Abriu.
Três pessoas na porta. Reconheceu duas, a faxineira e a mulher do aluguel. Havia um rapaz atrás, pensou num primeiro momento ser algum parente da proprietária. Não era:
-Oi, desculpe-me, sei que tem visitas, mas é urgente.
-Mas é comigo?
-Sim, sem dúvidas.
Olhou pras duas “cobradoras” e implorou:
-Só um minutinho?
Olharam com cara feia, mas esperaram:
-Um minuto! Disse a proprietária.
O rapaz entrou no apartamento minúsculo.
-E então? Perguntou sem jeito. Sentindo a cara alargando pra cima e pros lados.
-É rápido. Eu estive com Alonso, o cara da livraria e ele falou que você comprou o último exemplar do livro do Dr Coentro, tinha sua ficha com endereço lá e ele gentilmente me deu, liguei, mas só dava ocupado, olha, não me leve a mal, mas preciso muito desse livro.
-Ta na merda também? Saiu sem querer.
-Que? – Não...É que...Parou quando viu a tela. Espantou-se.-Que maravilha! –Você é artista?
Ela olhou pra tela, e não parecia dela, estava de fato linda, cores borradas, manchas destorcidas....O quadro era a própria expressão de dor.
-Nossa!- Me passa uma alegria!
“Alegria? É louco, só louco pra estar atrás do livro do Coentro.”
A campanhia tocou.
-Desculpe Sr....
-Vladson.
-Então Sr Vladson, essas duas senhoras vieram me cobrar, isso mesmo, e estou sem grana, melhor não ficar por perto- Não quer voltar depois?
-Você? –Sem dinheiro?- Quanto custa a tela?
-Quê?
-O preço da tela, quanto? E foi pegando a carteira.
-Bom. Somou os 50 da faxineira com os 500 do aluguel “noves fora”...
-Mil!
-Só?
“Burra”
Tirou em notas de 100. Mil reais.
-Tem duas de cinqüenta?
Tinha.
Abriu a porta, pagou as duas que entrolharam-se com cara de “Virou puta”
Voltou pro rapaz que continuava admirando a tela e perguntou:
-Mas porque quer o livro do Coentro?
-É que me ajudou faz muito tempo, perdi e queria outro, coisa de artista doido.
-Ajudou?
-Bem, eu estava desesperado, era um pintor fracassado, meu avô queria que eu fosse um Di Cavalcanti, apesar de preferir arte pop. Minha vida era uma merda, li todos livros de auto-ajuda, tudo uma idiotice. –Mas o fato é que hoje sou dono de uma galeria de arte. Sabe como comecei? -Chorando em cima de uma tela!-Olha que palhaçada! E riu.
Ela riu sem jeito.
-Nossa acreditou nesse charlatão?
-Quando estamos desesperados fazemos até corrente na internet.-Sei que não teve nada a ver com ele, mas o importante é que chorei, e tudo que eu precisava era colocar essa dor pra fora, tão fácil, e não percebi. –Quanto quer pelo livro?
-Nada, não preciso mais dele, fui convidada para expor numa grande galeria.
-Mesmo?- Pago adiantado para expor na minha!
-Quanto?
-O preço de uma tela, penso em vender cada uma por 30 mil.-Você é genial!-Vende fácil!
Ela engasgou.
-Bem, pensando assim, combinado!
-Podemos tomar um café pra acertar os detalhes? Havia ali um algo a mais....
-Sim, mas olha.
-Quê?
-Lembrei que emprestei o livro do Coentro pra uma amiga. Achei tão bobo, e ela tava tão mal.
-Tudo bem, vim procurando uma coisa e achei outra muito melhor!
Ela lavou o rosto de “semi-paquiderme”.Foram.
Antes escondeu saltitando, o livreto no armário de temperos.Ainda precisaria dele.
“Cinco anos antes uma Ong fez o projeto; “Livros no Manicômio”, publicou-se uma pequena coleção. O internado esquizofrênico e epilético que se auto-intitulava “Dr Coentro” estava no programa. Fizeram uma pequena edição sem sucesso, venderam dois exemplares de cada autor . Ninguém queria comprar coisas escritas por doidos.”

Fim

Comentários

Anônimo disse…
linda..amo vc b

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